segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Eu não minto

Pois é.
Só que começamos a mentir exatamente no momento que dizemos que não mentimos.
Dizemos que não mentimos, com tamanha vêemencia, porque temos essa sensação de que mentira é uma coisa feia. Tá, é feio. Mas entra no rol do mal necessário. Não dá pra contar a verdade 100% das vezes. E o texto abaixo fala um pouco sobre isso. De onde vem? Claro que da Vida Simples... rsrs...

Bem verdade que sou contra os livros de auto-ajuda... E a gente pode inclusive pensar que a Vida Simples seja uma "revista auto-ajuda"... Enfim, se o é, é muito bem disfarçado!


M de mentira

Mentir ou ser sincero? Todo mundo já se viu diante dessa questão crucial. Veja alguns pontos que o ajudarão a responder essa pergunta danada quando ela aparecer
Liane alves

Aprendi a relatividade da verdade e da mentira com um filminho cult delicioso realizado por Orson Wellles num dos momentos decadentes de sua carreira. O cineasta filmou o seu F for Fake Verdades e Mentiras procurando mostrar o mundo dos falsários, estelionatários e golpistas em vários países. Num determinado momento, Orson Welles, que também é o narrador, fala algo como: Estou aqui em Dublin e garanto a vocês que nesses 20 minutos de filme não falei nenhuma mentira. Mas ele não está em Dublin coisa nenhuma, está no banco de um parque de Paris e só quem conhece muito bem as duas cidades vai saber que ele está mentindo. Na maior parte da fita ele mente deslavadamente, mas está só brincando, fazendo-nos ver a relatividade do que é falso e verdadeiro, e como o verdadeiro pode parecer falso e também como a mentira pode aparentar ser algo bem veraz. Em resumo, Welles está mostrando crua mente, e com aquele seu ar maroto, como é o nosso mundo. Senão, vejamos: mentimos nos chats da internet, construímos uma outra vida completamente falsa no Second Life, vemos dezenas de montagens no Youtube e somos alimentados por propaganda e publicidade, que apresentam um lado da verdade que interessa. Perfumes e desodorantes disfarçam nosso cheiro, roupas, as nossas formas, e a cultura de boteco, nossa ignorância. Até o universo ficcional de filmes, romances e novelas não passa de um bem contado faz-de-conta. Em resumo, fabricar histórias, criar ilusões ou acreditar em mentiras é o que fazemos o tempo todo. Mas, se olharmos com cuidado, talvez, lá no fundo, exista uma verdade bem escondida que revela nossa própria verdade.

Os cientistas gostam muito de uma pesquisa e o que eles falam sobre a mentira é interessante. Segundo um estudo do Centro de Ciências Sociais e de Comportamento da Universidade de Massachusets, não conseguimos manter dez minutos de conversa sem contar duas ou três mentirinhas. Começa, por exemplo, com o clássico Vou bem depois do Como vai? Geralmente quem responde não vai lá tão bem assim, mas afirma que está tudo nos conformes para não revelar uma condição indesejável assim, sem mais nem menos. No mais, ninguém quer ouvir lamúrias no começo de uma conversa. Talvez depois, mas não logo de cara.

Um personagem maravilhoso de Luiz Fernando Guimarães, o supersincero, quebra todas essas convenções iniciais. O supersincero é aquele que, no elevador lotado da firma, pergunta se a feijoada estava boa para uma colega de trabalho já que, revela em alto e bom som, viu um pedacinho de feijão grudado no seu dente. O campeão da sinceridade perde emprego, oportunidades, amigos e namoradas porque é absolutamente honesto com os outros. O mais interessante é que ele não entende por que as pessoas se ofendem, já que está dizendo a mais pura e simples verdade.

Portanto, um ponto importante a ser considerado é que a verdade tem um timing próprio, isto é, o tempo e a ocasião mais convenientes para ser dita. Todo analista ou psicoterapeuta sabe disso. Ele tem de perceber quando o paciente está pronto para ouvir o que ele avaliou, intuiu ou sentiu, diz a psicóloga paulista Vera Andrada e Silva. O sucesso de uma terapia depende bastante desse feeling do terapeuta, diz ela. Em resumo: não dá para dizer algo avassalador de supetão, mas só dentro de um processo de amadurecimento interno e confiança recíproca que se estabelece ao longo do tempo.

Isso porque a verdade geralmente dói. Quando alguém diz: Posso ser sincero?, todo mundo sabe que lá vem bala de canhão. Mas, se a verdade dói e assusta num primeiro momento, ela dá alívio e conforto depois, além de abrir um campo de novas possibilidades e relacionamentos, diz a psicóloga Vera. A mentira também dói, de outra maneira, porque sufoca e não dá oportunidade para uma expressão verdadeira, diz. Além disso, também dá muito trabalho: muitas vezes todo um castelo de mentiras tem de ser construído e vigiado para proteger uma única falsidade. É um desperdício enorme de energia e um gerador eterno de tensão. Que depende de nossa idéia ilusória de que podemos manipular eternamente o mundo.

A verdade sobre a mentira

Muita gente já falou sobre mentiras e auto-engano. Uma das abordagens mais interessantes é a do mestre armênio Georges Gurdjieff. Diz ele que mentimos sempre, até quando pensamos que estamos dizendo a verdade. E por que ele diz isso? Porque garante que somos uma legião de eus internos: o que é verdade para um, num momento, pode ser mentira para outro logo depois. Vamos dizer, por exemplo, que acordamos de mau humor. Estará presente um eu irritado, desconfiado, fechado e raivoso. Para ele a vida está repleta de coisas chatas feitas especialmente para incomodá-lo. O tempo passa, o mundo gira e lá pelas 2 da tarde a existência não parece tão ruim assim. Já relaxamos e conseguimos rir com algum amigo, uma ou outra pessoa já parece razoavelmente interessante e, se alguém perguntar para esse eu o que ele acha do mundo, certamente ele será bem mais flexível e disposto que eu matinal. À noite, bem mais calmos, e até alegrinhos, podemos beber um bom vinho ao lado de amigos, discutir sobre um tema que nos interessa especialmente num ambiente acolhedor e, maravilha!, o mundo ganha um pó dourado e reluzente. O futuro da humanidade parece ser mais esperançoso e a vida, cheia de alegria. Quem desses eus está mentindo ou falando a verdade? Se levarmos em consideração a coerência, por exemplo, todos eles mentem, porque se contradizem. E quem será o eu real que está atrás deles?

Gurdjieff concordaria em gênero, número e grau com Mark Twain, no seu ensaio O Declínio da Arte de Viver. Escreveu ele, em 1882: Todo mundo mente cada dia, cada hora, dormindo; acordado, nos seus sonhos, na sua alegria, em todas as manhãs. Agora você pode me perguntar: qual é a saí da então para essa sinuca de bico? Mais consciência, tanto das nossas mentiras e verdades como da relatividade de cada uma delas. Gurdjieff diz mais: com mais consciência, desenvolvemos mais consideração e respeito pelo próximo. Antes de abrir a boca, pensamos: o que ele é capaz de ouvir?, o que pode interessar a ele e não só a mim, posso dizer algo que o torne mais feliz, que o beneficie? É um passo atrás da sinceridade impulsiva mas um à frente da consciência em relação a si mesmo e ao outro.

Claro, a consciência vai se desenvolver por um conjunto de práticas e métodos presentes no caminho, mas é ela que vai interessar mais, até mesmo com relação à sinceridade daquilo que chamamos verdade (que pode ser, como vimos, só pertencente àquele momento). Essa atitude pode incluir até o que nossas mães nos aconselham desde pequenos: Não importa o que tia Mercedes deu de presente, sempre diga que gostou muito. Afinal, tia Mercedes fez a toalhinha de crochêcor-de-rosa com todo carinho, pensando só em agradar, e, para ela, saber que você gostou vai encher seu coração de alegria. Uma mentirinha que não faz mal. Mas, com o tempo, você pode dizer a ela, por exemplo, que sua coleção de toalhinhas já está completa e que da próxima vez você ficaria muito feliz se recebesse um presente para sua nova paixão: CDs de jazz. Explique para ela por que gosta desse tipo de música, como ela alimenta seu coração. Desse jeito ela dificilmente irá se ofender.

Verdades ultrapasadas

Também há outra questão. A verdade de um momento pode ser ultrapassada por uma nova informação. Dia desses recebi uma série de perguntas de uma revista especializada para serem feitas a um cientista internacional. Achei as perguntas muito boas, totalmente pertinentes. Elogiei sinceramente a editora da revista. Daí mostrei para um amigo que entende do assunto e ele me provou por a+b que elas eram tendenciosas. Eu, que não estou tão mergulhada no tema, achei a moça o máximo, mas, e agora? Minha verdade tornou-se mentira! Vai dar trabalho, eu sei, mas vou ter de questionar cada pergunta com a editora, item por item, com base em meu novo entendimento.

Então podemos dizer que gostamos da toalhinha de crochê, mas não podemos engolir algo que vai contra nossos princípios, nossa ética? Bem, quando a mentira fere a ética, é bom pensar duas vezes. Há um núcleo ético dentro de nós e sabemos perfeitamente quando ele é desrespeitado. Se continuamos a mentir, todo nosso ser denuncia. O psicólogo americano Paul Elkman, que escreveu o livro Contando Mentiras (sem edi-ção brasileira) é perfeitamente capaz de identificar quem está mentindo e traindo seu núcleo ético com 60% de acerto, apenas observando as microexpressões do rosto do mentiroso.

No filme Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, atrizes e pessoas comuns ser revezam contanto histórias de vida. Mesmo com todo o empenho das atrizes, fica visível a diferença do discurso atuado do discurso que expressa a verdade profunda de uma pessoa. Há um núcleo de autenticidade ali que é impossível negar, principalmente diante de uma tela gigante que revela todos os detalhes de um rosto. Mesmo assim, Elkman aconselha cautela. O melhor é perguntar muito, quando se está em dúvida. E ficar muito atento às microexpressões faciais, diz ele. Porque há gente que aprendeu a mentir até olhando olho no olho.

Mas, mesmo se alguém estiver mentindo, devemos nos perguntar por que ela estaria fazendo isso. Por interesse, para prejudicar, enganar? Ou para nos poupar de uma dor? Por isso, é preciso muita calma nessa hora. A mesma que se deve ter quando você se pergunta: Devo ou não devo ser sincero agora? Ter uma idéia mais clara a respeito das intenções e conseqüências do que se vai ser dito é absolutamente essencial. De verdade.

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