segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Daí que ela sabia que a vida era feita de erros e acertos, de esperas e despedidas, de medos e superações.

E ela sabia que não deveria perder a esperança diante das pequenas intempéries, que o mal por vezes vence e que mesmo que a vida não seja sempre final de novela, vez por outra havia finais felizes.

Ela sempre soube disso. Por vezes duvidou da linearidade e por outras da circularidade. Mas também não se importava, pois sabia que tais dúvidas também faziam parte do jogo.

Porém, a demora a fez perder a paciência, o viço, a querência. E, de repente, deixou de ser ela e se perdeu. Não sabia nada mais sobre as suas origens e cessaram as suas perguntas - mostrando que tampouco o futuro lhe importava.

E foi aí que nasceu o medo. Medo de não ser o suficiente, de não ser o que deveras necessitava, de ter que fazer o que não queria.


E por enquanto, é onde se encontra ela. 

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BACALHAU

Vítor e Vivinha decidiram dar uma última chance a se casamento. Despois de dez anos, nada mais dava certo, se irritavam um com o outro – era preciso ir atrás do amor perdido. E o lugar para procurá-lo era o restaurante onde tinham se conhecido, onde tinham ido na primeira vez em que saíram juntos, onde ele a pedira em casamento e onde comemoravam a data todos os anos. Até o sexto, quando, por alguma razão, pararam de frequentar o restaurante. Se o que tinham perdido estava em algum lugar, estaria no velho restaurante. Talvez as risadas dadas e as promessas de amor secreto ainda estivessem lá, presas no teto como balões de aniversários esquecidos, esperando o resgate. E se não estivessem, pelo menos haveria os bolinhos de bacalhau.

O restaurante continuava no mesmo lugar. Estava vazio.

– Até as toalhas são as mesmas! – disse Vivinha.

E os dois sentaram-se e ficarm se sorrindo, enternecidos, as boas lembranças rondando a mesa como fantasmas solícitos. Até que veio o garçom. Seria o mesmo do tempo deles?

– O senhor é o Adolfo?

– Não – respondeu o garçom.

E não fez qualquer comentário. Não ser o Adolfo parecia um fato ao qual ele se resignara há muito tempo. Vítor tamborilou a mesa com os dedos – um de seus hábitos que ultimamente irritavam Vivinha – e pediu:

– Antes de mais nada: bolinhos de bacalhau!

O garçom afastou-se, claramente não contagiado pelo entusiasmo de Vítor. Deixou sobre a mesa um cardápio datilografado e plastificado. nada como os de antigamente. Vivinha examinou o cardápio, depois de pousar suas mãos suavemente sobre os dedos agitados de Vítor, para fazê-los parar.

– Mudou tudo – disse Vivinha, largando o cardápio.

Ficaram de mãos dadas, olhando em volta, sorrindo levemente mas sem dizer nada, até chegarem os bolinhos. Quatro. Cada um pegou um, mordeu e começou a mastigar.

– E então? – perguntou Vítor, depois de um tempo.

– Ainda não cheguei ao bacalhau.

– O meu está ótimo.

– Você está brincando.

– Não, está ótimo. Igual ao que era no nosso tempo.

– Só que no nosso tempo era de bacalhau mesmo. Agora é de batata.

– Como, batata? E este gosto de bacalhau?

– Eles usam outro tipo de peixe. Muita batata, e um peixe barato. Bacalhau está muito caro.

– Eu estou sentindo um gosto bem definido de bacalhau. Igualzinho ao que eu me lembrava.

– Não é mais o mesmo, Vítor.

– Acho que é má vontade sua.

– Não sou eu, Vítor. É o bolinho.

Vítor pegou outro bolinho e botou inteiro na boca. Mastigou furiosamente.

– Mmmm – disse, desafiador.

– Vítor…

– Ô Adolfo! – gritou Vítor para o garçom, de boca cheia. – Mais quatro. E duas cervejas.

– Vítor, você pode mastigar esses bolinhos o quanto quiser, não vai encontrar bacalhau.

– Pois eu digo que é bacalhau.

– Não é mais, Vítor.

Ele parou de mastigar. Tirou o que sobrara da boca e colocou no prato. Olhou para Vivinha.

– E se a gente fingisse que é bacalhau?

– Não dá, Vítor.

O garçom chegou com as cervejas.disse que os bolinhos estavam vindo.

– Suspende – ordenou Vítor.

– Vão pedir mais alguma coisa? – perguntou o garçom, indicando o cardápio com um queixo desdenhoso.

– Ainda não escolhemos.

Quando o garçom foi embora, Vítor inclinou-se para Vivinha e disse:

– Sabe o que eu acho? Acho que no nosso tempo já não era bacalhau. E a gente adorava.

– Era bacalhau.

– Não era. Nada era bacalhau naquela época. Mas você revirava os olhos assim mesmo.

E Vítor começou a batucar na mesa com os dedos até Vivinha abafar suas mãos com as dela. Desta vez com raiva.

Luis Fernando Veríssimo.

Um comentário:

L.S. Alves disse...

Algo me diz que o Vitor está certo. Nada era grandes coisas, mas a empolgação do momento, a novidade, fez tudo parecer mágico e melhor do que realmente era.
Um abraço moça.


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